segunda-feira, 2 de março de 2009

QUARESMA

Penha Carpanedo Para viver
a quaresma


O caminho de fé-conversão implica em etapas sucessivas e em movimento progressivo. O ano litúrgico, com seu ritmo anual, semanal e diário, que se repete, corresponde a essa pedagogia. Os tempos e as festas que voltam a cada ano, com as mesmas leituras, os mesmos cantos e orações, não é um monótono repetir-se das coisas, nem simples reprodução dramática da vida terrena de Cristo; é memória ritual da salvação que se realizou em Jesus ‘uma vez por todas' e à qual, em diferentes momentos da vida, damos nossa renovada adesão. O ano litúrgico é representação sacramental do mistério de Cristo que nos permite avançar no processo pascal de nossa identificação com Ele, até atingirmos “o pleno conhecimento do Filho de Deus” (cf. Ef 4,13).

Na prática, trata-se de fazer da própria celebração uma experiência espiritual que transforma e anima todo o nosso ser (corpo, mente e coração) e que se prolonga na vida cotidiana e em nossa missão no mundo. Concretamente, o que se propõe é fazer bem a ação ritual e prestar atenção em cada gesto e palavra, acompanhando com a nossa mente e o nosso coração aquilo que a boca proclama e o corpo realiza. Tomemos como exemplo as celebrações no tempo da quaresma.

A ação ritual

Primeiro domingo da quaresma! O espaço da celebração está sensivelmente vazio, sem flores e sem ornamento, apenas ostentando a cor roxa e discreta iluminação. A celebração foi preparada cuidadosamente, tudo está pronto. Nenhum ruído ou sinal de ansiedade por parte de cantores, tocadores e demais ministros e ministras da celebração. Nenhuma improvisação de última hora. O que predomina é o silêncio, como um convite à oração. Sem quebrar esse clima contemplativo, o animador do canto ensaia alguns refrãos... e, após mais um pequeno período de silêncio, a celebração começa.

Em tom solene, mas com pouco instrumento musical, dá-se início ao canto de abertura ‘João Batista clamou no deserto', cantado fervorosamente por toda a assembléia, enquanto ministros e ministras entram em procissão, trazendo em destaque a cruz (processional). No lugar do ato penitencial, o rito da aspersão da água ‘recordando o batismo' e pedindo a Deus que ‘nos livre de todos os males'.

À medida que a celebração avança, cantos e orações se sucedem, conduzindo-nos ao coração do mistério que celebramos na quaresma. A primeira oração pede a Deus que ao longo desta quaresma ‘possamos progredir no conhecimento de Jesus e corresponder ao seu amor por uma vida santa'. O evangelho traz o relato de Jesus guiado pelo Espírito ao deserto e a primeira leitura é o credo da comunidade judaica, centrado na memória do Êxodo. O prefácio louva ao Pai porque Jesus, ‘desarmando as ciladas do antigo inimigo, ensinou-nos a vencer o fermento da maldade'. E assim, nos domingos seguintes, uma riqueza imensa de orações, imagens, personagens, Palavra e símbolos pedem a nossa atenção, e vai propondo um caminho progressivo de mudança e crescimento que nos conduz à vigília pascal.

A atuação de ministros e ministras – conscientes e interiormente centrados no mistério – permite à assembléia participar ativamente, prestar atenção em cada palavra e gesto, apropriar-se e deixar-se impregnar dos elementos que compõem a liturgia quaresmal com seu sentido próprio.

O sentido teológico-litúrgico

Se toda celebração cristã é memorial da páscoa de Jesus Cristo, o ciclo pascal, consagra, com mais intensidade, um tempo especial para celebrar a memória da vida, morte e ressurreição de Jesus, para que as comunidades cristãs possam fazer da vida uma páscoa contínua. A quaresma, tempo que prepara as festas pascais, faz memória do Cristo, em seus 40 dias pelo deserto revivendo na própria experiência os 40 anos do povo de Deus. É tempo de preparação para a Vigília Pascal, não apenas cuidando da exterioridade da festa, mas retomando profundamente a vida batismal.
Assim, a quaresma nos é dada como ‘sinal sacramental da nossa conversão' em Cristo. É ele que nos converte e faz ‘arder o nosso coração' com a sua palavra. A conversão não é resultado do nosso esforço voluntarista, mas obra do Espírito de Deus que realiza em nós a transformação pascal, reavivando nossa adesão a Jesus Cristo. A austeridade e as diversas ausências que se verificam na liturgia da quaresma remete-nos ao necessário vazio do coração a ser preenchido com a Palavra que julga nossos corações e nos converte. As ‘vestes de penitência', apontam para a necessidade de tomar consciência do mal que está instalado no coração humano, assim como nas relações interpessoais e sociais. Se não fosse assim, não existiria a guerra, a violência, a destruição da natureza... Por isso, o grande apelo da quaresma é mudar de vida.

Viver conforme a quaresma

Durante a liturgia quaresmal, leituras bíblicas, cânticos e orações, gestos e silêncios ressoam em nós como convite à conversão. Fazendo memória da salvação que já se realizou em Cristo pelo batismo, somos chamados/as a perceber o que nos falta para viver de acordo com essa salvação.
No plano pessoal, o primeiro passo é conhecer a nós mesmos com nossas ambigüidades e sombras, reconhecer e aceitar nossa fragilidade, acolher nela a salvação de Deus que nos torna capazes de perdoar a nós mesmos e aos outros. Somos chamados a abrir-nos ao Espírito Santo que nos faz abraçar o perdão como possibilidade de não aprisionar a si e aos outros nas conseqüências negativas das próprias escolhas. Somos chamados a superar o mal pelo exercício constante do bem: o amor concreto não será uma conseqüência, mas um caminho de conversão; à medida que ousamos amar, mesmo conhecendo toda a nossa fragilidade, opondo a violência com a tolerância e o perdão, estamos em movimento de nascer de novo para uma vida nova.

Agindo dessa maneira, estamos começando em nós o que desejamos para o mundo, a sociedade, a terra. O Dalai Lama afirma a esse propósito: ‘A mensagem que ouvimos de todas as Fontes espirituais é clara: Somos Todos Um Só. O esquecimento dessa Verdade é a única causa do ódio e da guerra, e, para nos relembrarmos disso, é simples: Ame, neste momento e no próximo. O gesto concreto positivo, ainda que pequeno e isolado, tem repercussão para a humanidade, para o universo, e o mal que fazemos aos outros atinge a nós também'.

Não é um caminho fácil; as imagens que aparecem na liturgia quaresmal falam de renascer, o que implica morrer, à maneira do grão de trigo que para dar fruto terá que morrer no chão. Por isso a cruz é o segredo do amor que se torna capaz de dar a vida. O ‘sacrifício' por si mesmo não pode gerar transformação, sem amor até pode soar como provocação; o amor sim, a qualquer preço, é um testemunho capaz de gerar vida.

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